De barriga cheia, Renato Gaúcho não engole saída do Flu: "O que mudou?"

Oito meses se passaram desde a saída de Renato Gaúcho do Fluminense. E durante todo esse tempo o GloboEsporte.com tentou falar com o treinador. A quinta passagem pelas Laranjeiras havia terminado de forma silenciosa. Renato saiu sem dar entrevistas, mas com muito a dizer. No apagar das luzes de 2014, reconheceu que foi vencido pelo cansaço. Na conversa num bar em Ipanema, Zona Sul do Rio, não evitou qualquer assunto. E foi sempre direto. 

- O Cristóvão (Borges) é amigo meu, me dou muito bem com ele. Mas os problemas todos eu resolvi. Cristóvão chegou com tudo pronto, tudo bonito.

Renato é crítico ao comentar a decisão do presidente Peter Siemsen de trocar o comando técnico no início da temporada, sua resposta mais longa na entrevista de uma hora e meia. Diz que o mandatário se deixou influenciar e se precipitou. A análise sobre o fim do patrocínio com a Unimed também é dura.

- O clube vai andar com as próprias pernas, mas não vai ser como a Unimed. Então não vai conseguir manter um time forte, pode ter certeza disso. Não vai ter condições. 

Renato se permitiu ficar sem trabalhar: "Tenho tudo na vida". Recusou convites de clubes da Série A por não considerá-los seguros e usou o tempo livre para descansar, ir à praia, se divertir, monitorar a filha Carol e resolver problemas que empurrava com a barriga. Mas o Fluminense é assunto recorrente, e a demissão foi indigesta.

Confira a íntegra da entrevista:
Como está a vida? O que você fez nos últimos oito meses?

Tranquilo. Vivendo, fazendo minhas paradas. Resolvendo meus problemas particulares, curtindo um pouco a vida, fazendo tudo aquilo que não posso fazer quando estou trabalhando. Jogar meu futevôlei, curtir minha filha, curtir minha família, passear. E acima de tudo resolver muita coisa que vou empurrando com a barriga quando estou trabalhando. Nada muda na vida. Normal. 

Que tipo de coisas foi empurrando com a barriga?

Tudo mundo tem problemas para resolver. Alguns você precisa resolver imediatamente. Outros pode jogar mais para frente. Eu tenho outros negócios, outras coisas para fazer. Aproveitar a vida. Não sou aquele treinador, e nada contra os que fazem isso, que não pode deixar de trabalhar mesmo quando não estão precisando. Eu tenho minha vida, dou um tempo na minha vida, troco de ares, refresco a cabeça. Vida de técnico é estressante demais. E eu não sou aquele tipo de treinador, primeiro porque eu não preciso, que sai de um clube e já tem que começar no outro. Tive convites. Até posso fazer isso, mas em primeiro lugar tem que ser uma coisa boa. Segundo: se eu achar que minha cabeça tem que dar um tempo, eu dou um tempo. Até porque o ano passado foi pegado para mim lá no Grêmio. Aí troquei o Grêmio pelo Fluminense. Estava há praticamente um ano e meio numa pauleira. Então, é justo que eu me dê um tempo. Gosto de trabalhar e curtir a vida. Não faço só uma das duas coisas. 

Que clubes te convidaram?

Tive convite do Bahia, tive do Criciúma. Os grandes dispararam, estiveram bem desde o início do campeonato, não trocariam de treinador. Tive esses convites, mas não quis pegar pelo motivo de que chegou num determinado momento do campeonato que seria muito estressante, pela situação deles no campeonato. Tanto é que os dois caíram. Aí você vê o planejamento. Muitos clubes acham, e não é só o Renato, que um treinador vai chegar com uma varinha mágica e vai salvar, apagar os problemas. Não é assim. E o último que apaga a luz é sempre o culpado. 

Já está sentindo falta de trabalhar?

Já, mas tinha de dar esse tempo pela pegada que eu vinha. Mas ano que vem estou de volta. Daqui a pouco me acerto com alguém. 

Tem convite?

Mais ou menos. Tinha que deixar acabar o Brasileiro e agora vou ver o que aparece e se vai ser bom para mim ou não.

Você é treinador desde 2000 e no seu currículo trabalhou muito mais por clubes do Rio. Além disso foram duas vezes no Grêmio, uma no Bahia e outra no Atlético-PR. Tem vontade de migrar para outro estado?

Trabalhei em quatro estados. Tenho vontade, mas depende dos convites, se os clubes querem também. Eu não deixo de atender ninguém. Aí vou ver se é bom para mim ou não. Não depende do estado. Fui trabalhar no Bahia na Segunda Divisão. Achei do c....! O Bahia é um p... de um clube! Precisa ser mais organizado, tanto é que caiu. Tem uma p... de uma torcida! É uma p... cidade para trabalhar! Fui amarradão, trabalhei lá 10 meses, só saí porque o Grêmio veio com um caminhão. Não saí para o Grêmio porque estava na Segunda. O Grêmio veio com um caminhão, é meu clube, quis salvar meu Grêmio que estava em 19º lugar e levei à Libertadores em 2010, coisa que aconteceu de novo ano passado. O Grêmio estava mal no campeonato, fui lá, e o Grêmio foi vice-campeão brasileiro. Se tiver convites de outros estados, vou estudar. Lógico! Eu sou treinador. Se for boa proposta, eu vou. Vou amarradão. Saí da Bahia com 45 graus e fui para zero em Porto Alegre. E olha que é meu estado. Não preciso ficar desesperado para trabalhar. Não vou pegar qualquer coisa e depois o Renato é o culpado. Não... 

Está difícil achar clubes com projetos seguros para o treinador?

Está. Muito difícil. Porque simplesmente às vezes nem é o clube que é o culpado. A não ser que o cara banque. No Brasil, os caras querem resultado para ontem. Não é assim, pô! É só olhar para os outros clubes. Todo mundo vai ter problema. Não vai ser da noite para o dia que você vai chegar no clube e resolver. O treinador já chega com um monte de problema. Quando começa a resolver os problemas, daqui a pouco não chegam os resultados. E daqui a pouco você é mandado embora.

Já digeriu a saída do Fluminense?

Não vou falar que não digeri e nem que digeri. Porque sou um cara tranquilo, independente, entendeu? Agora, eu nunca falei, por exemplo, que o Fluminense, que é um clube que gosto muito, que gosto muito da torcida, fiz muito pelo clube, tinha muitos problemas. Se você parar para pensar, vai ver os problemas que eu achei quando cheguei no clube. Uma que o Fluminense tinha caído ano passado. Só não caiu por causa daquilo lá (perda de pontos da Portuguesa). Cheguei com dez dias de pré-temporada para colocar o time em campo. Trouxe Alexandre (Mendes), que é um grande preparador físico. E trouxe um cara, que está lá hoje, que o Fluminense tem de dar graças a Deus, que se chama Filé (fisioterapeuta). Então, você vai ver o que o Filé já fez pelo Fluminense em pouco tempo. Nós chegamos e alguns jogadores não jogavam há cinco meses. Acho que o Fred era um (ficou três meses em recuperação de lesão e mais um em recuperação física). Carlinhos, Diguinho... sei que eram cinco ou seis que não jogavam há muito tempo. O Filé botou todo mundo em campo, começamos a formar o time. Trouxemos o Waltinho com 112 quilos, e o Alexandre colocou ele com 90 quilos, 92. E isso tudo durante o campeonato. E aí numa semifinal nós perdemos para o Vasco. Nós tínhamos perdido um jogo na Copa do Brasil lá (derrota por 3 a 1 para o Horizonte-CE), que era para a gente ter se classificado lá. É só ver os gols que o Fred perdeu e que não costuma perder. Mas perdeu por falta de ritmo. Aí perdemos para o Vasco, e o presidente, com os problemas dele, tem todo direito, é o presidente, colocou o Cristóvão. O que mudou? Eu deixei tudo pronto para o Cristóvão. Recuperei os jogadores todos. E o Cristóvão é amigo meu, me dou muito bem com ele. Mas os problemas todos eu resolvi. Cristóvão chegou com tudo pronto, tudo bonito. Saiu da Copa do Brasil daquele jeito (goleada para ao América-RN no Maracanã), uma semana depois em dois jogos saiu da Sul-Americana (contra o Goiás) e não conseguiu ir para a Libertadores. Eu te pergunto: e aí? Será que o Peter não se precipitou? Mas, não vou me meter. Ele é presidente, respeito, continuo respeitando o clube. Peguei muitos problemas pelo que o clube viveu ano passado, as cobranças da imprensa, de todo mundo. E aí, daqui a pouco, por outros problemas que não vale a pena eu tocar agora, estourou em mim. Sem problema nenhum. 

Você foi vítima da relação conturbada entre Fluminense e Unimed? O Celso Barros não queria a sua saída, mas o Peter Siemsen venceu a queda de braço. Você foi bode expiatório?

Ia trocar por que, caramba? Se fosse por isso, o Cristóvão disputou três campeonatos e deu no que deu. Nos outros clubes, treinadores perderam dois, três campeonatos, e continuaram. O cara que entende um pouquinho de futebol, que é um pouquinho inteligente, vai juntar as coisas e ver o que aconteceu no Fluminense. Só isso. Mas está tranquilo. Cheguei pela porta da frente, como vice-campeão brasileiro (com o Grêmio, em 2013), e fui embora muito tranquilo. E até hoje todo mundo me liga. Jogadores, empregados, comissão. 

Você foi criticado por algumas pessoas internamente. Alegavam que não fazia treinos coletivos e táticos. Peter não teria aprovado seus treinos. Isso chegou para você? 

Trabalho tático eu dava todo dia. Em segundo lugar, não posso escutar um cara falar, por exemplo, o presidente, que não dou coletivo. Em primeiro lugar, esse cara não entende nada de futebol. Começa por aí. Ou vou ter que explicar que jogador começa a pegar ritmo com os jogos, e no Brasil se joga a cada três dias, não pode dar coletivo porque o desgaste já é muito grande? O entrosamento é natural. O trabalho tático é o que mais faço. Um cara que fala isso é burro. Pode escrever que é burro, porque não entende. Se entende tanto, por que não vai para a beira do campo ser treinador? Infelizmente, todos os clubes têm esses cornetas que querem opinar sem entender. Tem esses caras que buzinaram na cabeça do Peter, por exemplo, que eu te pergunto: cadê eles? Já foram embora do clube. Um cara que não entende nada de futebol vai dar conselho ao presidente. Vai lá na beira do campo, amigo. Não pode escutar quem não entende nada. Dava o regenerativo na segunda, o tático na terça e os dois toques. Vai reclamar dos dois toques? Então reclama com todos os treinadores do Brasil. Então nenhum treinador é bom. O Cristóvão cansou de dar futevôlei. E o Cristóvão não ganhou nada. O Felipão dava futevôlei na Seleção. E por isso é um treinador ruim? 


Você falou de pessoas que saíram, que Peter ouviu quem não deveria. Uma dessas pessoas era o Jackson Vasconcelos?

Era um cara que estava no ouvido do presidente todos os dias, que o presidente escutava. Se você não entende, fica calado. 

Nota: Jackson é ex-assessor da presidência e voltou ao clube este mês para ajudar Peter, por meio de sua empresa, no processo de transição pelo qual a instituição passa após o rompimento com a Unimed.A saída de Jackson do Tricolor se deu em agosto deste ano. Após pressão de correntes políticas, inclusive da situação, por conta de um suposto envolvimento na eleição do Vasco, através do candidato Julio Brant, o dirigente deixou as Laranjeiras.

Existia essa influência?

Eu ouvia falar desse cara aí. Ouvia que era uma pessoa que o presidente escutava. 

Prejudicou seu trabalho?

Pergunta para o presidente. 

Depois da eliminação na Copa do Brasil, Cristóvão correu risco de demissão, mas ficou. Qual foi a sensação, já que com você foi diferente? Ficou com raiva?

Não. O Peter não tinha ninguém buzinando no ouvido dele. Se tivesse alguém no ouvido dele, talvez não segurasse o Cristóvão. 

Peter falou com você depois da saída?

Foi o (Ricardo) Tenório, que era o cara que tinha de falar da demissão na época (ex-vice de futebol). Me dou com o presidente, só acho que ele escutou quem não deveria ter escutado. Mais nada. Tanto é que foi provado no restante do ano.

O tratamento que você teve do Fluminense foi o tratamento que um ídolo merece?

Aí você tem que ver da pessoa que trata, se ela tem essa noção. Eu sei diferenciar de uma ou outra pessoa que não me trata como ídolo, não posso misturar com uma torcida. Faço todo dia 10, 15, 20 fotos com tricolores. Então tenho que saber separar. Se fui tratado como ídolo ou não, não sei. Importante é ser idolatrado pela torcida. O que vale é a torcida. 

Como você viu a decisão do Celso Barros de encerrar a relação com o Fluminense?

Esse cara merece uma estátua no Fluminense. E vou falar uma coisa: uma minoria que não sabe dar valor para o Celso Barros vai dar valor pelo que vai acontecer no Fluminense. 

E o que vai acontecer?

Quem tem que responder é o atual presidente.

Mas você conhece o clube, Renato. Você viveu essa parceria. 

O que posso falar é que o doutor Celso Barros sempre bancou um time forte no Fluminense. O clube vai andar com as próprias pernas, mas não vai ser como a Unimed. Então não vai conseguir manter um time forte, pode ter certeza disso. Não vai ter condições. Não estou falando da boca para fora. Não vai ter condições. Não importa quem entre no lugar da Unimed. Não vai ter condições de bancar um time forte como o doutor Celso sempre bancou. E a torcida não quer saber de prejuízo, de dinheiro, quer time forte, quer ser campeã. Não é só no Fluminense, é em qualquer lugar. Se o Fluminense vai conseguir bancar isso? Eu quero ver. 

Você teme que o Fluminense volte a viver dias muitos difíceis?

Ah, não sei. Quem tem que responder é o presidente. Eu espero que não, mas vou falar que infelizmente... as próprias pessoas que estão lá hoje em dia estão falando disso. Que o ano que vem pode ser terrível sem a Unimed. Mas isso já não é um problema meu. É um problema do presidente. 

Como foi a conduta do Celso no episódio da sua saída? E de lá para cá como está a relação?

Sempre foi igual. Como seria bom se nós tivéssemos mais Celsos Barros no Brasil todo, em outros clubes. Teríamos times sempre muito mais fortes, ele investindo, outras pessoas com o mesmo pensamento dele. Os clubes poderiam segurar muitos jogadores que vão para fora. Celso Barros é um cara que tem que estar sempre no Fluminense, como outras pessoas como ele deveriam estar em outros clubes. Todo mundo ganharia com isso. A torcida, vocês da imprensa, treinador, jogadores. Meu relacionamento com o doutor Celso Barros sempre foi igual. Sempre tive prazer de trabalhar com ele na boa e na ruim. Até porque eu já fiz muito pelo clube. Gostaria de continuar. Não me desceu ainda, estou ainda entalado com a Libertadores (derrota na final de 2008), mas fiz o gol de barriga, ajudei a dar o título da Copa do Brasil (como treinador, em 2007). Chegamos em terceiro naquele ano (na verdade, o Flu terminou na quarta posição no Brasileiro de 2007). Salvei o clube em alguns rebaixamentos. É só ver meu trabalho em todos os clubes. Você vai ver.

Foi sua quinta passagem pelas Laranjeiras. Sempre que sai, fica a impressão de que vai voltar. Saiu com essa sensação?

Eu saí pela porta da frente. Eu não sou brigado por ninguém. O cara me mandou embora? Ele tem todo direito, tem a caneta. Você tem que perguntar para ele (Peter) se foi justa ou não a minha saída. Tem que perguntar para ele se foi precipitada. Agora, ninguém é eterno no clube. Então, sempre entrei e saí pela porta da frente. Se um dia vou voltar para o Fluminense? Não sei. Eu gostaria. Que fique bem claro que não tenho nada contra o Peter. A única coisa que eu acho é que ele se precipitou. Mas ele tem todo o direito, ele é o presidente.

Voltaria na gestão dele, que termina no fim de 2016?

Da minha parte problema algum. Para você ver, o Fluminense me deve desde a minha saída. E eu nem sequer estou cobrando o clube, de tanto que eu gosto do Fluminense. Me deve. O clube, não tem nada a ver com a Unimed. Geralmente, a primeira coisa que as pessoas fazem é colocar o clube na Justiça. Eu sempre gosto do diálogo.

Fonte: Ge
Foto: Richard Souza/Montagem Paredão Tricolor
Texto: Richard Souza

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